Suicídio: entre o pensamento e o ato

18 de Octubre de 2017

[Por: José Neivaldo de Souza]




Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. 

Sou feliz na hora errada. 

Infeliz quando todos dançam.

Clarice Lispector

   

Às vezes sou tomado por ideias, que me aparecem, sem que eu as convoque. Chamam de espírito aquilo que, muitas vezes, nos perturba e não conseguimos expulsá-lo de nossa mente. Neste momento é hora de invocar o Espírito Santo e ser socorrido por ideias que nos tragam luz e vida. Um dia desses recebi a notícia de que um amigo, professor de filosofia e reverendo, havia se enforcado. Ele tirou a própria vida, exatamente no mês dedicado ao “setembro amarelo”, tempo de conscientização sobre a prevenção do suicídio. As variações em torno do tema eram diversas: uns culpavam a depressão; alguns não o desculpavam e outros arriscavam um julgamento a partir de sua convicção religiosa: “é falta de Deus”. Quem deve carregar a culpa? A depressão? O suicida? Deus? 

 

Não posso julgar a depressão. Ela é um transtorno psíquico e, apesar dos sintomas de pessimismo, baixa autoestima, falta de expectativa e pensamentos frequentes de morte, se tratada, não necessariamente leva ao suicídio. O que fazer com a dor de existir? Eis a questão da depressão. A pessoa pode querer acabar com a dor se matando ou lidar com ela como parte da vida. Esta é uma dor que chega, ou de forma hereditária (por genes recessivos), ou de forma adquirida (biopsicossocial). Saber lidar com as frustrações ou com a falta delas é fundamental na lida com a depressão e na prevenção contra o suicídio.

 

Há pessoas que lidam com a depressão tomando remédios ou se submetendo a tratamentos psicoterapêuticos; há pessoas que lidam com ela, se for branda, de forma diferente: jogando bola, cantando, lendo livros, escrevendo, se divertindo e há pessoas que “se contentam em rasgar a própria fotografia”, como brinca o escritor francês Pierre-Jules Renard. São diversas as formas de lidar com a depressão. Lembro Carlos Drummond de Andrade que em seu poema, “E agora José”, descreve a visão de alguém, quem sabe ele mesmo, que não tendo para onde fugir pensa na morte como solução. O que o mantem firme é o fato de poder falar disso. A escritora Clarice Lispector trazia constantemente o tema em seus textos: “tenho tanta vontade de ser corriqueira e um pouco vulgar e dizer: a esperança é a última que morre”.

 

A Organização Mundial da Saúde estima que mais ou menos 15% da população mundial sofre de depressão. Esta estatística é incerta visto que é uma doença difícil de ser diagnosticada. Sigmund Freud tinha cuidado ao diagnosticar alguém. Para ele, devemos nos certificar, em primeiro lugar, se estamos cercados de idiotas, antes de nos diagnosticar de tal doença. Eu também tenho receio de diagnosticar a depressão.

 

Não devo julgar quem comete suicídio. O filósofo Albert Camus observou que o único problema realmente sério é o suicídio que é, de certa forma, um resultado da busca de sentido: “julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia”.

 

Como condenar aquele que, descontente com a própria vida, resolveu resolver-se na sua ausência? Fica o sentimento de pena, pois 9 em cada 10 casos podiam ser evitados. Ficam também as indagações: será que se perdoou? Não teve motivos para viver? Nem por amor ao outro? Para quem acredita na eternidade a morte não deveria ser o oposto da vida, mas parte dela. A poetiza portuguesa Florbela Espanca, diante da ideia de que são os covardes e fracos que suicidam, reagiu dizendo que somente os fortes se matam.                 

 

Esta ideia é ressaltada pelo escritor Oscar Wilde ao observar que somente os “fortes” são capazes de se autocriticar. Para ele, o suicídio é resultado de uma sincera autocrítica e, aqui posso concordar com o psiquiatra Augusto Cury, que o suicida, ainda que planeje acabar consigo, não pretende matar senão a própria dor de viver e, para isso também, é preciso coragem. Dirão que a coisa mais fácil é tirar a própria vida e que não é preciso coragem para tanto, basta querer dar fim na dor de viver.

 

Não pretendo rotular um suicida como fraco, desesperado e culpá-lo por sua atitude. Há nele uma paixão inefável a qual Manuel Bandeira expressa em seu poema. Ele queria que o seu “ultimo poema” contemplasse “a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos; a paixão dos suicidas que se matam sem explicação”.

 

Não posso julgar Deus. Como entender que a culpa está na ausência de Deus? Muito se tem falado nesta ideia, mas ela é passível de questionamentos, pois em muitos casos havia a certeza de que é melhor estar com Deus na eternidade do que viver o vazio e a angústia de viver. Muitos religiosos ligam o sofrimento, a dor e a morte à ausência de Deus. Teologicamente isso é um erro, pois muitas vezes Deus nos fala na falta, no nosso sentimento de abandono.

 

Encontramos na história judaico-cristã personagens que chegaram a tirar sua vida e, no entanto, o testemunho acerca de sua salvação contradiz o senso religioso da condenação. Assim foi o caso de Sansão, ainda que sua intenção fosse acabar com os filisteus, deu cabo da própria vida (Jz 16,26-31) e, no entanto, a epistola aos Hebreus o recorda entre aqueles que foram recebidos na glória (Hb 11,32-35). O profeta Elias, homem de oração, fiel a Deus, implorou a morte no momento em que fora tomado de uma incontrolável angustia (1Rs19,4). 

 

O que dizer dos primeiros mártires cristãos, particularmente Inácio de Antioquia que impediu sua comunidade de frear a carroça que o levava para ser triturado pelas feras na arena romana? Irão dizer: mas, a causa é diferente? Sim, mas como posso julgar a causa se o que tenho em vista é o desfecho? Como afirmar que alguém não se salvará porque tirou a própria vida? Este veredicto não nos cabe. O suicídio é só um procedimento em vida e, muitas pessoas que o cometeram, foram servos de Deus, fiéis aos seus mandamentos. Apesar de não terem pensado nas consequências de seu ato, foram perdoados, ainda que com muita dor, por aqueles que ficaram.

 

Longe de mim fazer apologia ao suicídio. O mandamento “não matarás” serve em qualquer circunstância, mas quem pode saber as causas que levam uma pessoa a desaparecer consigo mesmo? Como não quero me cercar de idiotas; nem quero ser eu mais um idiota a imputar a culpa, o que me resta é refletir sobre esta realidade que, de tão ignorada, bate à nossa porta e pede atenção e misericórdia.

 

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