Vá e não peques mais

25 de Octubre de 2017

[Por: José Neivaldo de Souza]




Pecado é o amor elevado de si mesmo, até o desprezo de Deus 

(Santo Agostinho).

   

As palavras de santo Agostinho me fazem refletir. Entramos numa cultura onde se cultiva o individualismo e consequentemente o narcisismo. Cada vez mais se dá importância à uma produção de cultura onde o “eu” se coloca como o centro do universo. Dele tudo sai e para ele tudo volta. Ao refletir sobre pecado me pergunto também, como Agostinho, se os verdadeiros valores necessários a uma cultura de justiça e amor não estão se perdendo.

 

Perguntei, certa vez a um pastor sobre o que é pecar. Sem muita explicação, e dentro da doutrina que professava, me disse: “pecar é errar o alvo”. Fiquei com esta afirmação na mente e sempre me perguntava como seria “o alvo”, no sentido religioso da palavra. Consultei um teólogo amigo e ele me dissera que pecado é tudo o que desagrada a Deus, o que me deixou mais confuso ainda. Entendi, a partir daí, que errar o alvo desagrada a Deus, isto é, o pecado não agrada ao Senhor, porém me esbarro em outra questão: como saber sobre a vontade de Deus?   

 

Abro o Antigo Testamento e vejo que as literaturas se divergem quanto ao pecado e a vontade divina. Por exemplo: a literatura sacerdotal creu que Deus se agrada do sacrifício de animais, portanto, ao pecador cabe se redimir, não só através do jejum e oração, mas elevar-se a Deus ofertando um animal para o holocausto, se quiser se salvar. Esta realidade aparece em Gênesis (4, 4-5) quando o Senhor rejeita a oferta de Caim, fruto da sua colheita no campo, e aceita a oferenda de Abel, isto é, a gordura e o melhor do seu rebanho. Deus se agradou também do sacrifício de Noé (Gn 8,20-21). Como se não bastasse, no livro de Levítico, ele ordena que o animal para o sacrifício deve ser imaculado, sem defeito (Lv 1, 1-4), para que o fiel à luz desta imagem, seja perfeito. No sacrifício da expiação (Lv 16, 1ss) o Sumo sacerdote oferecia dois bodes pelo pecado de Israel: um devia ser sacrificado sobre o altar e o outro devia carregar, pelo deserto, os pecados de Israel. O sacrifício tinha um caráter mais comunitário e menos individual.

 

Na literatura profética o alvo, ou a vontade de Deus, é outra. A maioria dos profetas viram que a lei do sacrifício havia se tornado meio de salvação e o que de fato agradava a Deus não era praticado: a misericórdia. Para eles, é nesta relação com o próximo que a vontade de Deus se cumpre. O Reino de Deus não está em oferecer sacrifícios a ele sem sacrificar-se pelo irmão. O substantivo masculino Hesedh, em hebraico, tem diversas traduções como: bondade, piedade, benevolência, amor e compaixão.

 

Samuel, Oséias e Zacarias interpretam e anunciam a misericórdia divina. Em Samuel (15, 21-23) o profeta declara que Deus quer conhecimento de sua causa. De nada adianta a gordura dos carneiros se não há submissão de coração, misericórdia. Oséias (6,6), ainda mais radical, escreve que Deus não quer holocaustos, mas um coração contrito e humilhado capaz de amar a Deus nos mais vulneráveis, talvez seja por isso que ele se casou com uma prostituta. Zacarias (7, 8-10), nesta linha, transmite a mensagem do Senhor dos exércitos observando que Deus se agrada da verdadeira justiça, da misericórdia e da compaixão mútua. Todos devem ser respeitados e os preconceitos às viúvas, aos órfãos e aos estrangeiros devem ser eliminados.

 

O entendimento neotestamentário acerca do pecado se dá a partir da visão profética. Em Marcos (11, 15) Jesus aparece como um profeta diante do templo, corrompido pelas leis sacrificiais, e começa a expulsar os que comercializam animais. Em Mateus (9,1) ele diz aos seus seguidores: “Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas pecadores”. Por que ele chama os pecadores, os que erram o alvo? Será que é para corrigi-los ou para ensinar sobre o amor gratuito? Em outra passagem Jesus chama atenção dos líderes do templo: “Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifícios, não condenaríeis os inocentes” (Mt 12, 7).

 

A teologia cristã debruçou-se sobre esta questão e particularmente Agostinho, em suas Confissões, observou que a causa do pecado está em abandonar os valores superiores e se apegar às coisas passageiras e de modo particular aos seus próprios interesses. Tudo passa: a riqueza, o poder e, até mesmo, o desejo de ser eterno. Escreveu ele, referindo-se ao Salmo 64 (63), 11: “Na verdade, esses bens inferiores também satisfazem, mas não como satisfaz o meu Deus, que tudo criou, pois nele o justo encontra a sua alegria, e ele é a alegria dos homens de coração reto”. 

 

Lutero, na esteira de Agostinho, entendeu que o ser humano, pecador, não tem outra saída senão conscientizar-se de suas atitudes e voltar-se para Deus a fim de cuidar de sua salvação. O modelo de misericórdia é Jesus. Nele, Deus revela o seu desejo de comunhão com a humanidade; nele a imagem ofuscada e a semelhança decaídas pelo pecado, são resgatadas. A fé em Jesus e não os méritos das obras é o que justifica o ser humano diante de Deus.

 

A questão do pecado é ressaltada hoje em muitas igrejas. Sob a veste de sacrifícios se tenta apaga-los. Dias atrás um pastor convidou a comunidade para que fizesse quarenta dias de jejum a fim de agradecer a Deus pelas bênçãos recebidas. O pastor aconselhava aos fiéis a deixarem de fazer coisas que mais lhes agradam. Um testemunho me chamou atenção: uma pessoa iria deixar de beber Coca-Cola por quarenta dias. Iria renunciar a este prazer. Pergunto se tal renúncia agrada a Deus, favorece a comunidade ou é uma atitude que esconde a indiferença em relação à justiça e o amor aos mais necessitados. Provavelmente a economia feita por não consumir Coca-Cola não seria destinado a nenhuma causa nobre e isso faz lembrar os fariseus da época de Jesus.      

 

Rubem Alves em Do Universo à Jabuticaba fez uma meditação interessante acerca do pecado. Ele interpreta a passagem em que Jesus afirma, diante dos fariseus que viam pecado em tudo, menos neles mesmos, que as prostitutas os precederiam no Reino dos Céus. Observou que Jesus não disse: “meretrizes arrependidas”. O que quis dizer com isso é que a Graça de Deus contradiz em muito a lógica da religião: “um Deus que é todo amor não pode ter no seu universo uma câmara de torturas eternas em que as almas sofrem por pecados cometidos no tempo”.

 

 

Não tenho respostas certas às questões referentes ao pecado e à vontade de Deus, a não ser aquelas que me chegaram a partir da tradição cristã. O que tenho são perguntas certas em horas erradas e, com Clarice Lispector, posso dizer que enquanto as respostas não chegam vou continuar escrevendo. 

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